A carne
A carne mais barata do mercado é a carne negra Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego E pros hospitais psiquiátricos
A carne mais barata do mercado é a carne negra Que fez e faz história pra caralho
Segurando esse país no braço, meu irmão. O gado aqui não se sente revoltado Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador é lento, mas muito bem intencionado Esse país vai deixando todo mundo preto
E o cabelo esticado
E mesmo assim, ainda guardo o direito De algum antepassado da cor
Brigar por justiça e por respeito De algum antepassado da cor Brigar bravamente por respeito [4]
Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette, Farofa Carioca, IN: Moro no Brasil, Polygram, 1998, CD, faixa 7.
Por Rodrigo Iennaco de Moraes (doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais) e Yago Condé Ubaldo de Carvalho (estudante de graduação e pesquisador iniciante em Direitos Fundamentais na Universidade Federal de Juiz de Fora).
Introdução [1]
Não se pode falar em racismo no Brasil fora da perspectiva histórica. A história do Brasil é a história da discriminação do negro, a partir da adoção do modelo de produção escravocrata, cujas consequências não foram erradicadas com o abolicionismo formal.
Nesse prisma, este ensaio procura estabelecer conexões entre discriminação racial e direito, demonstrando como o racismo latente é percebido, construído e reproduzido pela cultura social. Como pano de fundo, a ilustração analítica de uma manifestação cultural musical (popular e contemporânea) se revela pertinente, porque evidencia que a perpetuação da discriminação no Brasil se deu com o auxílio de um projeto não só ideológico, mas também estético, que possui o negro como alvo.
A abordagem do tema é feita à luz das modernas teorias de direitos humanos – especialmente das noções de direitos fundamentais, contidas no regime constitucional brasileiro – e das teorias que tratam esses direitos como demandas que devem ser compreendidas com a imprescindível análise dos contextos históricos nos quais elas se inserem.
Dessa maneira, será possível evidenciar a pertinência e a correlação dessas teorias com o propósito abolicionista, apresentado como projeto inacabado, favorável a um contrapoder argumentativo democrático, capaz de gerar uma hermenêutica constitucional abolicionista.
Na realização de um exercício de hermenêutica constitucional, procura-se mostrar a necessidade de que – para além do arcabouço teórico disponibilizado pelas teorias referidas – medidas concretas sejam tomadas. Buscando apontamentos básicos para soluções ou meios de atuação, deparamo-nos, entre outras questões, com as funções institucionais do Ministério Público.
O trabalho adota como marco teórico o abolicionismo em Joaquim Nabuco, como visão histórica do processo de emancipação do negro e como projeto político não realizado. Debatendo hermenêutica jurídica e racismo, tomamos o direito como mecanismo de canalização da mentalidade social e instrumento de difusão de crítica à realidade.
O abolicionismo em Joaquim Nabuco: necessidade de releitura
O historiador brasileiro Francisco Iglésias define O abolicionismo, de Joaquim Nabuco (1883), como a reflexão mais coerente, profunda e completa já feita no Brasil sobre o assunto. Nessa obra, o autor conceitua com rigor
o tráfico negreiro e o abolicionismo nas suas várias etapas, até a Lei de 1871, que emancipou os filhos de escravas nascidos a partir de 28 de setembro desse ano.
Compreender o racismo hoje só é possível com o resgate de sua matriz histórica, o que parece óbvio. Por essa razão, justifica-se sua adoção comprometida como marco, pela lição fundamental sobre a compreensão original do escravismo, que, por seu caráter perverso, produz efeitos discriminatórios até os nossos dias. Não há, a nosso sentir, como enfrentar a questão sob outra perspectiva, senão pelo materialismo que resgata a historicidade dialética dos conflitos sociais, que são inaugurados pelo viés econômico de um meio de produção e tendem à perpetuação pelo aniquilamento da condição de sujeito em relação a todos os descendentes de escravos, marcados pela cor da pele, como se determinados a uma sina eterna, como castigo pela luta vitoriosa pela liberdade formal.
No prefácio de sua obra, registra Nabuco que já existia,
felizmente, em nosso país, uma consciência nacional – em formação, é certo – que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação, e para a qual a escravidão, apesar de hereditária, é uma verdadeira mancha de Caim, que o Brasil traz na fronte. (NABUCO, 1883, p. 21).
Para esse autor, a escravidão é a degradação sistemática da natureza humana, por interesses mercenários e egoístas e, “se não é infamante para o homem educado e feliz que a inflige, não pode sê-lo para o ente desfigurado e oprimido que a sofre”. A independência do Brasil, para ele (1883, p. 22), apenas seria completada pela Abolição, capaz de elevar o Brasil à dignidade de país livre, como o foi em 1822, quando o país tornou-se nação soberana perante a América e o mundo.
Porém, do ponto de vista histórico-político, o abolicionismo não se restringia, e nesse sentido não se restringe, ao momento em que foi sistematizado, como complemento imediato às ações empreendidas em 1850 e 1871 [2]. O abolicionismo não visava apenas à emancipação em massa dos escravos, exterminando-se todas as transações de domínio sobre entes humanos. O abolicionismo, na concepção de Nabuco, não é só isso e não se contenta apenas com a enfim vitoriosa missão de promover o resgate dos escravos e dos ingênuos:
Essa obra – de reparação, vergonha ou arrependimento, como queiram chamar – da emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do Abolicionismo. Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regímen que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores […].
Quando mesmo a emancipação total fosse decretada amanhã, a liquidação desse regímen daria lugar a uma série infinita de questões, que só poderiam ser resolvidas de acordo com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça e humanidade que dá vida ao Abolicionismo. Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao Poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância.
[…]O nosso caráter, o nosso temperamento, a nossa organização toda, física, intelectual e moral, acha-se terrivelmente afetada pelas influências com que a escravidão passou trezentos anos a permear a sociedade brasileira. A empresa de anular essas influências é superior, por certo, aos esforços de uma só geração, mas enquanto essa obra não estiver concluída, o Abolicionismo terá sua razão de ser. […]
A luta entre o Abolicionismo e a Escravidão é de ontem, mas há de prolongar-se muito, e o período em que já entramos há de ser caracterizado por essa luta. (NABUCO, 1883, p. 25-26).
Não temos dúvida em afirmar que, no início do século XXI, as tarefas do abolicionismo não se cumpriram; ao contrário, adormeceram e permanecem latentes, escamoteadas sob a liberdade e a igualdade formais. Os elementos discriminatórios aí estão, passados de geração a geração, como herança maldita. Arremata Nabuco, traçando as bases do abolicionismo:
No Brasil, a questão não é, como nas colônias européias, um movimento de generosidade em favor de uma classe de homens vítimas de uma opressão injusta a grande distância de nossas praias. A raça negra não é, tampouco, para nós, uma raça inferior, alheia à comunhão, ou isolada desta, e cujo bem-estar nos afete como o de qualquer tribo indígena maltratada pelos invasores europeus. Para nós, a raça negra é um elemento de considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro. Por outro lado, a emancipação não significa tão-somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação simultânea de dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor.
[…]A escravidão moderna repousa sobre uma base diversa da escravidão antiga: a cor preta. Ninguém pensa em reduzir homens brancos ao cativeiro: para este ficaram reservados tão-somente os negros. Nós não somos um povo exclusivamente branco, e não devemos portanto admitir essa maldição da cor; pelo contrário, devemos tudo fazer por esquecê-la. (NABUCO, 1883, p. 32-33).
Da necessária redefinição do substrato étnico pelo critério da cor da pele para compreensão do racismo como estética da exclusão
Situada a discussão numa vertente crítico-metodológica que precede a formação do discurso racional e, assim, que se antecipa ao universo jurídico, a abordagem jurídica da linguagem conduz à necessidade de compreensão do racismo, numa perspectiva jurídica de contexto mais amplo, que a aproxima do conceito de efetividade das relações Direito-sociedade e a insere numa vertente zetética ou jurídico-sociológica, envolvendo o debate entre a cultura, a política e as formas de distribuição dos direitos e de exigência dos cumprimentos dos deveres, tendo por norte e perspectiva de abordagem os direitos humanos e a(s) teoria(s) de conflitos (GUSTIN, 2002, p. 41).
Nesse sentido, Ferreira (2012) propõe como método de análise de situações sociais de crise o confronto de alguns “pares de opostos” geralmente trabalhados pela teoria (sociológica) da ação social: movimento social e grupo de pressão, particularidade e universalidade, atores sociais e sistema, atores sociais e agentes políticos. Na sua concepção “sociológica da ação”, com apoio em Touraine (1981), as questões situacionais da sociedade são o resultado instável das relações entre atores sociais, que, por intermédio de conflitos sociais e orientações culturais, “produzem” a sociedade. Então, “um movimento social é ao mesmo tempo um conflito social e um projeto cultural”, pois pretende a “realização de valores culturais, ao mesmo tempo em que a vitória sobre um adversário social” (TOURAINE, 1997, p. 254). Assim, a ação – individual ou da coletividade –, como situação social, também se baseia na cultura, ou seja, na construção coletiva de normas que influenciam as relações de um dado grupo social com outros que lhe são concernentes: em vez de representar a ideologia do dominador, definem de fato um campo social e “os atores históricos são determinados tanto pelo campo da cultura quanto pelo conflito social” (TOURAINE, 1997, p. 66).
Tomado o racismo como percepção ou constatação da discriminação pejorativa do negro no Brasil, o primeiro pressuposto a ser eliminado é o da igualdade. O discurso de que somos um país de mestiços – se aplicado de maneira a evitar medidas compensatórias inclusivas à população negra historicamente marginalizada – serve apenas para encobrir a profunda desigualdade na distribuição dos bens sociais e dos meios de acesso às políticas públicas e oportunidades privadas. Esse tipo de discurso perpetua uma secular prática discriminatória silenciosa, que reserva os postos sociais degradados para os descendentes de escravos.
Passado mais de um século desde a abolição formal da escravidão, ocorrida em 13 de maio de 1888 – ocasião em que se admitiu a discussão sobre indenização dos fazendeiros que perdiam os escravos de sua propriedade, mas não sobre políticas de inclusão dos recém-libertos –, o que se deve perquirir são ações concretas capazes de complementar a tarefa política que teve como marco inicial a Lei Áurea, numa pauta de medidas reais que se insiram numa agenda maior de resgate da dignidade de uma significativa parcela do povo brasileiro.
A história do Brasil é marcada por séculos de distribuição desigual dos direitos e do poder a partir de uma perspectiva de dominação, profunda e originalmente marcada pela escravidão dos negros e, a partir dela e mesmo depois de sua suplantação no nível formal, a perpetuação de concepções distorcidas que imprimem, a partir de uma discriminação autoritária e degradante, uma condição diminuta ao negro, tratado como “sub- gente” ou como ser de categoria inferior. Esse preconceito hediondo é o instrumento de aniquilamento mais perverso de direitos fundamentais, visto que silencioso e capaz de incutir na mentalidade de sucessivas gerações uma estética dominante e, a partir dela, projetar de maneira absolutamente desigual a distribuição de oportunidades socioeconômicas. [3]
Nesse contexto, prescindindo da discussão a respeito da classificação em gênero, espécies e raças, que não tem amparo científico definitivo, quer em relação ao “homo”, quer em relação ao “negro”, fixamos nossa atenção no elemento concreto de definição da escravidão e fator hereditário de discriminação social: a cor da pele negra.
A existência de projetos éticos e estéticos escravistas que tiveram o negro como alvo nos permite elegê-lo como núcleo da doutrina abolicionista. Como bem mostra Cardoso (1988), os regimes escravistas buscavam justificações que lhes conferissem legitimidade para se instalarem. Isso era conferido por uma ética específica de cada agente dominador inserido em cada sociedade, em observância às particularidades dessas sociedades. O que havia em comum na sociedade escravista brasileira e nos seus projetos éticos, com seus elementos estéticos próprios – seja os encontrados no discurso dos padres jesuítas, seja no discurso dos senhores de engenho –, era a discriminação do negro.
A questão que se coloca, portanto, é o resgate ou o definitivo enfrentamento da questão racial não solucionada com o advento da emancipação jurídica advinda, no plano legislativo, desde 1888. Esse déficit impõe ao país a adoção de práticas e políticas de bens, serviços e oportunidades diferenciadas, capazes de não apenas influir no aspecto da dignidade da vida material da população negra, mas também subjugar, definitivamente, toda manifestação que inferioriza o negro [4].
Fato é que o projeto abolicionista de Nabuco não foi concluído, e a perversa continuidade de práticas racistas e excludentes torna imperativa a retomada de sua luta. Um exemplo dessas práticas é a distribuição desigual dos instrumentos de controle social, estigmatizantes e segregacionistas. Embora não atuem a partir do prisma racial, emprestam sua eficácia de maneira desproporcional, de modo a se tornarem mais visíveis na atuação das camadas mais vulneráveis da sociedade. E, por isso mesmo, essas pessoas acabam submetidas a maior rigor no controle exercido pelas instâncias de privação da liberdade [5][6].
Diante destas constatações e com a necessária retomada do pensamento de Nabuco, doutrinas de direitos humanos e mandamentos constitucionais devem ser reexaminados à luz da doutrina abolicionista.
O diálogo com as modernas teorias de direitos humanos
A pessoa é o ponto de gravidade da ordem constitucional. A dignidade da pessoa humana expressa, assim, um valor que orienta os objetivos da ordem constitucional do Estado, os fins da democracia e os limites de intervenção do poder estatal nas liberdades. No campo da disciplina do poder punitivo, os direitos fundamentais aparecem como limitações garantistas em favor das liberdades, no paradigma do Estado Democrático de Direito. Esses direitos fundamentais expressam, na esfera do direito interno, a positivação dos direitos humanos, embora sejam complexos os estudos destinados a classificar e a estudar, a partir da terminologia diferenciada, as idiossincrasias que informam uma categoria e outra. Nesse sentido, Saldanha (2013, p. 261) assinala uma crise terminológica entre direitos fundamentais e direitos humanos, no sentido de que a dificuldade de compreensão da totalidade dos institutos acaba sustentando, de acordo com a natureza do estudo e o ramo jurídico em que se insere, uma visão bastante parcial de cada um.
Nesse contexto, costuma-se invocar o princípio da igualdade e a insubsistência de um conceito biológico de raça para negar-se a possibilidade de identificação do movimento em favor da população negra, ao argumento de que seria “prática de racismo” conferir tratamento diferenciado aos afrodescendentes. Essa perspectiva representa um subterfúgio descontextualizado, que camufla a realidade social e não enfrenta o problema da discriminação de maneira direta e dialógica, pregando-se um esquecimento pacífico de uma doença social que ainda não tem suas cicatrizes apagadas – exatamente porque ainda sangram.
O insustentável conceito biológico de raça sucumbe diante da realidade de discriminação pela cor da pele negra, pelo que ela representou em seu passado e representa no presente, em conflitos éticos e estéticos que repousam no choque entre a matriz cultural africana e a do colonizador europeu. Por intermédio de um conceito estético de beleza artificial que desrespeita a diversidade, surgiram para os negros dificuldades de (auto)reconhecimento perante a coletividade, ultrapassando, assim, o campo da estética para se intrometer nos padrões éticos da sociedade [7].
A questão da igualdade formal pode e deve ser suplantada, gradativamente, pela noção de alteridade, em favor de todos e a partir do banimento de qualquer manifestação discriminatória, sobretudo as que, mediante dissimulação, perpetuam a identificação de quaisquer aspectos depreciativos em conexão artificial com a cor da pele – e que têm, talvez nas piadas, gestos sutis ou símbolos grotescos, a ferramenta mais odiosa, porque vil, dissimulada e sem abertura ao diálogo com a dignidade humana.
Esta parece ser a tarefa do abolicionismo jurídico para o século que se inicia, ou seja, a ampliação do acesso ao exercício de direitos, em condições especiais para os negros. Cabe à hermenêutica jurídica (ou hermenêutica abolicionista) função de destaque na garantia da equidade e da justiça equilibrada, tarefa que, convenhamos, não é das mais simples, no sentido do alcance complexo da igualdade jurídica.
As ideias aqui defendidas encontram respaldo em teorias modernas de direitos humanos, que, apesar de alvo de numerosas críticas, são vetores de mudanças importantes nas sociedades, mudanças que apontam para a superação da ética racista. Douzinas, ao realizar uma breve mas crítica análise da evolução das doutrinas de direitos humanos, mostra que “o homem concreto que realmente desfrutava dos direitos foi, literalmente um homem – um homem rico, branco” (DOUZINAS, 2011, p. 5). O autor também aponta a necessidade de políticas públicas realistas, pois são elas que, em sua concretude, atingem os objetivos buscados pelos direitos humanos. Ele se filia a uma tradição hegeliana e adere à Teoria da Luta pelo Reconhecimento, pela qual, em sua análise, esses direitos têm função de permitir o pleno desenvolvimento da identidade de cada um e o seu reconhecimento pelo outro. É evidente o seu diálogo com o abolicionismo:
Direitos anti-discriminação dão a minhas características raciais [assim como sexuais ou de gênero] o reconhecimento mínimo e me ajudam a casar identidade pública e privada. (DOUZINAS, 2011, p. 8) [8].
Não é objetivo deste nosso texto esgotar alguma dessas correntes de proteção aos direitos humanos, mas nos parece importante deixar evidente o diálogo delas com o abolicionismo.
Finalizando essa abordagem, apresentamos o pensamento de Norberto Bobbio. O “historiador conceitualista” [9] italiano apresenta uma coerente análise da questão da fundamentação dos direitos humanos, apontando para uma perspectiva igualmente pragmática, em detrimento de uma fundamentação única de todos os direitos. Mostra que o surgimento de cada direito relaciona-se com o contexto histórico que os demanda, haja vista a pluralidade de direitos humanos, os momentos distintos nos quais surgem e também a possibilidade de conflitos entre eles. Por isso, essa análise social e histórica é imperativa para compreender tais demandas e solucioná-las através da “criação” dos referidos direitos e das condições materiais que por meio deles devem ser implementadas. A proposta de retomada do abolicionismo consiste exatamente em entender as demandas atuais dos direitos dos negros por meio da compreensão histórica do regime escravista brasileiro, verificando, a partir disso, quais linhas de atuação fundadas nesses direitos serão aptas a atender a essas demandas.
Hermenêutica constitucional abolicionista
Decorre do exposto que o resgate do abolicionismo em intertexto com as doutrinas de direitos humanos modernas impõe a busca de soluções – ações que proporcionem condições materiais de consagração de um abolicionismo pleno (ou ao menos que cheguemos próximo dele o mais rápido possível), como medida de afirmação e resgate de uma dívida histórica política e social.
A hermenêutica constitucional é veículo para isso, haja vista a posição de destaque da Constituição no ordenamento jurídico, seu caráter político e também suas características específicas. A chamada Constituição Cidadã veda qualquer discriminação em função de raça – evidente preocupação de resgate da discriminação racial negra decorrente do escravismo histórico – e declara imprescritível o crime de racismo.
Nesse sentido, o princípio da igualdade, expresso no art. 5º da CF, protege as minorias contra a atuação negativa da maioria, determinando a adoção de medidas positivas especiais que lhes favoreçam. Isso se aplica aos descendentes dos escravos, que aí estão à espera de medidas indenizatórias e compensatórias, capazes de definitivamente incluí-los como sujeitos aptos a desenvolver suas potencialidades e capazes de desfrutar do projeto de dignidade e acesso aos meios indispensáveis para tanto.
Esse tratamento diferenciado e especial se justifica nas raízes históricas do embate entre escravismo e abolicionismo, do qual resulta, ainda hoje, a vulnerabilidade dos negros pela simples condição de identificação discriminatória da cor da pele, associada à criminalidade, à marginalização e a outros aspectos degradantes a que foram, historicamente, submetidos.
A noção de igualdade substancial, em contraposição à mera igualdade formal, também é relevante e coerente com a busca por uma hermenêutica abolicionista [10]. As discussões a respeito das políticas de cotas em entidades de ensino superior não devem desprezar essa questão, uma vez que essas políticas são, a rigor, apenas a porta de entrada que se deveria alargar para permitir também outros caminhos de acesso privilegiado como estratégia de compensação do déficit histórico.
Na vigilância argumentativa em favor dessas políticas, o Ministério Público tem papel exegético importantíssimo, que será reforçado a seguir.
Hermenêutica constitucional: tarefas essenciais do Ministério Público e compromisso ético-constitucional com a superação das práticas de discriminação racial no Brasil
O Ministério Público (MP) é instituição essencial à função jurisdicional do Estado. Se o Estado, em sua conformação estrutural, compõe-se de Poderes, ou funções (executiva, legislativa e judiciária), estabelece-se como fundamental a conjugação de recursos para que as funções se traduzam em ações efetivas tendentes à consecução do interesse público e, num plano de materialização da democracia e de afirmação da cidadania, à concretização dos direitos e garantias fundamentais.
Por ser um órgão não jurisdicional, o MP não se encontra vinculado, em relação de subordinação, a nenhum Poder, senão ao poder que emana do povo. Esta característica está expressa por algumas prerrogativas que objetivam a proteção dos interesses fundamentais da sociedade. É exatamente nessa perspectiva de acesso material à Justiça que se afirma ser o MP da essência da jurisdição. Ou seja, não há jurisdição legítima sem MP. Vale dizer – diante do texto constitucional –, sem esta instituição não se exerce legitimamente a atividade judicante nos litígios que envolvam interesses sociais, em especial aqueles relacionados à tutela coletiva (interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos).
A lei – diz a CF/1988, ao consagrar o princípio da indeclinabilidade da prestação jurisdicional – não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a interesse juridicamente protegido. Portanto, uma garantia instrumental à efetividade de qualquer direito previsto no sistema normativo é o acesso à justiça.
Trata-se de um conjunto de imposições constitucionais endereçadas ao Estado e à sociedade (programa normativo), materializado pela atividade normativa, econômica e social a que especialmente o Estado está vinculado pelo seu dever jurídico de implementação de uma nova ordem econômica e social. O Direito é “instrumentalizado” numa nova postura de mudança, transformação da realidade para cumprimento dos objetivos sociais preconizados pelo constituinte originário.
A Constituição Federal diz que o MP é instituição essencial à função jurisdicional do Estado. Por sua finalidade institucional, deve-se entender a incumbência de proporcionar condições – judicial e extrajudicialmente – em todos os graus e instâncias, para que os objetivos da República Federativa do Brasil se cumpram em níveis crescentes de eficiência. A sua finalidade, pois, está expressa como instrumento do regime democrático e da afirmação da cidadania, significando, com isso, o caminho jurídico para a eficácia das normas que contemplem os direitos e garantias fundamentais no plano coletivo – sempre guiado pela luz do interesse social preponderante.
Dizer que o MP é da essência da jurisdição é proclamar, em outras palavras, que a participação da instituição nos espaços de conciliação de interesses tendentes ao fortalecimento da democracia não se dá por acidente ou por conjuntura circunstancial. Para além, este órgão é a própria representação dos interesses sociais fundamentais perante a jurisdição, tendo em vista sua missão constitucional. O MP não é, assim, mero defensor da sociedade em juízo, mas instrumento institucionalizado de concretização dos anseios sociais, numa perspectiva ética constitucionalizada, e de realização dos interesses fundamentais coletivos, por intermédio dos meios adequados de tutela – seja na técnica extraprocessual (mecanismos resolutivos extrajudiciais), seja na postulação de tais direitos e garantias em juízo.
O MP é o elo entre os anseios da sociedade e os deveres e possibilidades do Estado, sem qualquer vinculação com os interesses secundários da Administração. Essa posição é condição do equilíbrio de forças e instrumento de um modelo social mais justo, o que só pode ser compreendido por meio da ampliação dos mecanismos institucionais de promoção do acesso à justiça, passando pelo fomento à mobilização e à inclusão sociais. Logo, a questão racial assume aspecto de proeminência, como decorrência lógico-sistemática da defesa da democracia, razão de ser da essencialidade do MP na administração da Justiça – e, especialmente, para fazer valer a defesa dos interesses coletivos e sociais indisponíveis.
Em relação a esses interesses, o MP é destinatário constitucional de poderes-deveres que lhe autorizam e determinam a atuação em todas as frentes, como vetor de interesse público e social de implementação de políticas compensatórias da escravidão negra no Brasil. Com isso, deve atuar não só como agente jurisdicional, mas também como agente político, inclusive no plano de políticas públicas.
O déficit na implementação de medidas capazes de produzir efeitos em tempo razoável converte essa missão institucional numa de suas tarefas com maior pendência e crise de ineficácia. Uma das soluções para a redução dessa defasagem é a articulação de ações sobre a matéria em todos os temas em que atua, de maneira pulverizada e sistemática, porém transparente e identificada como comprometida com a revisão do processo de afirmação de direitos historicamente subtraídos da população negra.
Conclusão
A partir da premissa do projeto abolicionista como obra inacabada, defendemos, em homenagem às modernas doutrinas de direitos humanos e aos preceitos fundamentais de nosso regime constitucional, que seja sistematizada e realizada uma hermenêutica jurídico- abolicionista, de maneira a apontar princípios e ações necessárias à concretização desse abolicionismo tardio.
Este enfoque se revela como instrumento de emancipação social dos negros e, sendo assim, a interpretação que deve prevalecer é a que confere primazia à cor da pele nos assuntos em que, historicamente, a cor da pele houver servido de obstáculo – artificialmente implementado ou preservado pela parcela dominante da sociedade –, impedindo o acesso dos negros ao exercício dos direitos fundamentais. Nessa esteira, uma compreensão acurada do princípio da igualdade e de subprincípios que dele decorrem é importantíssima.
Além disso, estabelece-se o MP, a partir de sua missão constitucional, como mandatário de postulados democráticos que lhe outorgam uma herança bendita, qual seja, as atribuições decorrentes da resistência negra e que realçam a necessidade de renovação da luta por justiça e por respeito, através de ações extrajudiciais e judiciais de resgate da dignidade maculada pela discriminação [11].
Parafraseando Joaquim Nabuco, a luta não é apenas de um movimento “da raça negra”, mas uma luta de brasileiros que julgam o seu título de cidadão diminuído enquanto houver brasileiros que sofrem pela ausência de superação do estigma do passado de escravidão, isto é, no interesse de todo o país e no nosso próprio interesse [12]. Hoje, o mandato abolicionista não tem como mandantes tácitos escravos e ingênuos, mas cidadãos que ocupam na história, cada vez mais, seu espaço irrenunciável de sujeitos como protagonistas – ao mesmo tempo mandantes e mandatários. Os mandatários da causa abolicionista continuam sendo todos os brasileiros.
Notas:
[1] Adaptação de artigo originalmente apresentado no XXIII Encontro Nacional do CONPEDI, realizado no 1º semestre de 2014, em Florianópolis-SC, e publicado em capítulo do livro referente ao grupo de trabalho desse evento (Monica Bonetti Couto; Angela Araújo da Silveira Espindola; Maria dos Remédios Fontes Silva. (Org.). Acesso à justiça I. 1ed. Florianópolis: CONPEDI, 2014, v. 1, p. 490-509.). [2] Inicia-se o processo de supressão da escravidão, via restrição ao tráfico; depois, consideram-se libertos os filhos de escravos, embora, de fato, só alcançariam a liberdade após os 21 anos de idade. [3] Esse país vai deixando todo mundo preto/E o cabelo esticado. [4] A carne mais barata do mercado é a carne negra/ Que fez e faz história pra caralho / Segurando esse país no braço, meu irmão. [5] A carne mais barata do mercado é a carne negra/Que vai de graça pro presidio/E para debaixo do plástico/Que vai de graça pro subemprego/E pros hospitais psiquiátricos. [6] É a constatação corroborada por pesquisa empírica, de que destacamos ADORNO (2011). [7] Esse país vai deixando todo mundo preto / E o cabelo esticado [8] A respeito da Teoria da Luta pelo Reconhecimento, a obra de Axel Honneth, especialmente Luta por reconhecimento, é altamente indicada. Com inspiração em Hegel, esse autor descreve com clareza os preceitos, objetivos e as etapas dessa luta. [9] Denominação de Celso Lafer na apresentação da coletânea A era dos Direitos, na qual está reunida a obra do jurista italiano referente aos Direitos Humanos. [10] Há um bom número de textos que se debruçam sobre esse tema. A título exemplificativo, para reflexões sobre o conceito de igualdade e suas repercussões práticas, ver MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, Malheiros Editores. [11] O gado aqui não se sente revoltado / Porque o revólver já está engatilhado / E o vingador é lento, mas muito bem intencionado / […] E mesmo assim, ainda guardo o direito / De algum antepassado da cor / Brigar por justiça e por respeito / De algum antepassado da cor / Brigar bravamente por respeito. [12] “Aceitamos esse mandato como homens políticos, por motivos políticos, e assim representamos os escravos e os ingênuos na qualidade de brasileiros que julgam o seu título de cidadão diminuído enquanto houver brasileiros escravos, isto é, no interesse de todo o país e no nosso próprio interesse”. (NABUCO, 1883, p. 32).
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